sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

a cegueira

«Foi trabalhoso abrir a cova. A terra estava dura, calcada, havia raízes a um palmo do chão. Cavaram à vez o motorista, os dois polícias e o primeiro cego. Perante a morte, o que se espera da natureza é que percam os rancores a força e o veneno, é certo que se diz que o ódio velho não cansa, e disso não faltam provas na literatura e na vida, mas isto aqui, no fundo, a bem dizer, não era ódio, e de velho nada, pois que vale o roubo de um automóvel ao lado do morto que o tinha roubado, e menos ainda no mísero estado em que se encontra, que não são precisos olhos para saber que esta cara não tem nariz nem boca. Não puderam cavar mais fundo que três palmos. Fosse o morto gordo e ter-lhe-ia ficado de fora a barriga, mas o ladrão era magro, um autêntico pau-de-virar-tripas, pior depois do jejum destes dias, a cova bastaria para dois como ele. Não houve orações. Podia-se pôr-lhe uma cruz, lembrou ainda a rapariga dos óculos escuros, foi o remorso que a fez falar, mas ninguém ali tinha notícia do que o falecido pensara em vida dessas histórias de Deus e da religião, o melhor era calar, se é que outro procedimento tem justificação perante a morte, além disso, leve-se em consideração que fazer uma cruz é muito menos fácil do que parece, sem falar do tempo que ela se iria aguentar, com todos estes cegos que não vêem onde põem os pés. Voltaram à camarata.»

José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira (Caminho)

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