sábado, 22 de janeiro de 2011

Como amar uma cidade

«A cidade em que vivemos é a cidade que mais se ignora. Prontos estamos a admirar o crepúsculo romano, a sua luz violeta e avermelhada, a transparência opalina que aflora os túmulos da Via Ápia Antiga e a confidência doce dos pinheiros mediterrâneos. Ninguém se lembraria de subir ao terraço dum palácio de Roma para cismar no funesto episódio da Ponte das Barcas, do rio Douro, quando o Tibre está a seus pés e com ele a legenda dos doze Césares. Pensamos em tudo, nos embaixadores de Aníbal trazendo propostas de paz, nos tumultos da plebe, nos incêndios que parecem ter ainda ontem lambido as ruínas de barro; não pensamos no bairro onde durante vinte anos vimos transformar-se uma geração, nos largos melancólicos que mal olhamos e onde há talvez uma igreja, uma lápide ou varanda onde a chuva criou milhentas cabecinhas de musgo, vivas e petulantes. É preciso ser ocioso e talvez quase pobre, para conhecer a cidade em que se vive. Percorrê-la a pé, sem entrevista marcada ou hora de ponto, sem cuidar num amigo que nos salve dum capricho errante e nos conduza com segurança e método à mesa de um café. É preciso não ter amigos para amar uma cidade, para lhe pedir conselho e lhe dar a mão, para a tomar como amante e dedicar-lhe os nossos segredos, perplexidades e invenções»


Agustina Bessa-Luís em O Manto (Edição TV Guia Editora)

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