domingo, 23 de janeiro de 2011

desgosto crú

«Quando não havia uma grande desculpa, ninguém me deixava chorar, «Já pensaste nas vidas terríveis que há por aí? Devias agradecer a Deus o facto de teres casa, comida, saúde e uma tia que gosta de ti [...]» Com variações pouco significantes, o discurso que a maioria das pessoas assumia obrigava-me a justificar cada lágrima que vertia. Talvez só se devesse chorar em caso de doença grave, pela morte de alguém querido ou por qualquer motivo muito especial. O sofrimento devia então ser uma ciência exacta, bem lógica e entendível. Por isto mesmo, não era raro eu fantasiar ter um acidente. Durante a minha doença imaginária, a Manuela, chorosa e abatida, deitava a minha cabeça no seu colo, fazia festas no meu cabelo, preparava refeições, lia livros em voz alta e deixava de aspirar pela manhã. Os meses que passaria na cama permitiam todo um sofrimento justificado, entendido, perdoado. Os amigos procuravam animar-me, a Odete sorria apesar da chuva lá fora e, enganando todos, eu seria mimada não pelo desgosto da doença, mas pelo meu desgosto, o desgosto que ninguém entendia, o desgosto pelo qual ninguém me deixava chorar.»

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