quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

será da próxima vez

«Partir, ficar, fugir; actos que não poriam em jogo a sua liberdade. E no entanto era preciso arriscá-la. Agarrou-se com as duas mãos à pedra e debruçou-se sobre a água. Seria suficiente um mergulho, a água devorá-lo-ia, a sua liberdade tornar-se-ia água. O repouso. Porque não? Esse suicídio obscuro seria também um absoluto. Toda uma lei, toda uma escolha, toda uma moral. Um acto único, incomparável, que iluminaria durante um segundo a ponte e o Sena. Bastaria debruçar-se um pouco mais e ter-se-ia escolhido para a eternidade. Debruçou-se, mas as suas mãos não largaram a pedra, sustinham todo o peso do seu corpo. Porque não? Não tinha razão particular para se afogar, mas não tinha tão-pouco nenhuma para não o fazer. E o acto ali estava, à sua frente, sobre a água escura, desenhava-lhe o futuro. Todas as amarras haviam sido cortadas, nada no mundo o podia reter: era isso a horrível liberdade. Bem no fundo de si, sentia bater o coração desorientado: um só gesto, mãos que se abrem, e terei sido Mathieu. A vertigem ergueu-se devagar sobre o rio; o céu e a ponte desmoronaram-se: nada mais restava senão ele e a água; ela subia até ele, lambia-lhe as botas. A água, o seu futuro. Agora é verdade, vou matar-me. De repente resolveu não se suicidar. Resolveu: seria apenas uma prova. Reencontrou-se de pé, caminhando, escorregando sobre a crosta de um astro morto. Será da próxima vez.»

Jean-Paul Sartre em Pena Suspensa - Os Caminhos da Liberdade (tradução de Amélia Petinga, Bertrand Editora)

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