segunda-feira, 14 de março de 2011

o riso dos anjos

«Conceber o Diabo como um partidário do Mal e o anjo como um combatente do Bem é aceitar a demagogia dos anjos. As coisas são evidentemente mais complicadas.
Os anjos são partidários, não do Bem, mas da criação divina. Pelo contrário, o Diabo é aquele que recusa ao mundo divino qualquer significado racional.
O domínio do mundo, como se sabe, é partilhado por anjos e demónios. No entanto, o bem do mundo não implica que os anjos levem vantagem sobre os demónios (como eu pensava quando era criança), mas que os poderes de uns e outros estejam mais ou menos equilibrados. Se no mundo há demasiado significado incontestável (o poder dos anjos), o homem sucumbe sob o seu peso. Se o mundo perde todo o significado (o reino dos demónios), também não se pode viver.
As coisas inesperadamente privadas do seu suposto sentido, do lugar que lhes é atribuído na pretensa ordem das coisas (...) provocam-nos o riso. Na origem, o riso é, portanto, do domínio do Diabo. Tem algo de maléfico (as coisas revelam-se de repente diferentes daquilo por que se faziam passar) mas também contém em si uma parte de benfazejo alívio (as coisas são mais leves do que pareciam, deixam-nos viver mais livremente, cessam de nos oprimir sob a sua séria austeridade).
Quando o anjo ouviu, pela primeira vez, o riso do Diabo ficou estupefacto. O caso passou-se durante um festim, estava a sala cheia de gente, e as pessoas foram acometidas, uma após outra, pelo riso do Diabo, que é horrivelmente contagioso. O anjo percebeu claramente que aquele riso era dirigido contra Deus e contra a dignidade da sua obra. Sabia que, fosse como fosse, devia reagir depressa, mas sentia-se fraco e indefeso. Como era incapaz de inventar, macaqueou o adversário. Abrindo a boca, emitiu sons entrecortados, sacudidos, nos intervalos superiores do seu registo vocal (...), mas dando-lhe um significado oposto. Enquanto o riso do Diabo designava o absurdo das coisas, o anjo queria, pelo contrário, regozijar-se com o facto de tudo aqui em baixo estar bem ordenado, sabiamente concebido, bem e pleno de sentido.
Assim, o anjo e o Diabo opunham-se e, mostrando as bocas abertas, emitiam quase os mesmos sons, mas cada um exprimia pelo seu clamor coisas absolutamente contrárias. E o Diabo via o anjo rir, e ria-se ainda mais, tanto melhor e tanto mais francamente quanto o anjo que ria era infinitamente cómico.
Um riso ridículo é a ruína. Apesar de tudo, os anjos obtiveram um resultado. Enganaram-nos com uma impostura semântica. Para designar a sua imitação do riso e o riso original (o do Diabo) há apenas uma única palavra. Hoje já ninguém se dá conta de que a mesma manifestação exterior encobre duas atitudes interiores absolutamente opostas. Há dois risos e não existe uma palavra que os distinga.»

Milan Kundera em O Livro do Riso e do Esquecimento (Edições Asa, tradução de Tereza Coelho)

Sem comentários:

Enviar um comentário