segunda-feira, 7 de março de 2011

a vida da morte

«Este homem não está morto, pensou, despertará daqui a poucas horas, levantar-se-á como todos os outros dias, abrirá a porta do quintal para que o cão se vá livrar do que lhe sobra no corpo, tomará a refeição da manhã, entrará no quarto de banho donde sairá aliviado, lavado e barbeado, talvez vá à rua levando o cão para comprarem juntos o jornal no quiosque da esquina, talvez se sente diante do atril e toque uma vez mais as três peças de schumann, talvez depois pense na morte como é obrigatório fazerem-no todos os seres humanos, porém ele não sabe que neste momento é como se fosse imortal porque esta morte que o olha não sabe como o há-de matar. O homem mudou de postura, virou as costas ao guarda-roupa que condenava a porta e deixou escorregar o braço direito para o lado do cão. Um minuto depois estava acordado. Tinha sede. Acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira, levantou-se, enfiou nos pés os chinelos que, como sempre, estavam debaixo da cabeça do cão, e foi à cozinha. A morte seguiu-o. O homem deitou água para um copo e bebeu. O cão apareceu nesta altura, matou a sede no bebedouro ao lado da porta que dá para o quintal e depois levantou a cabeça para o dono. Queres sair, claro, disse o violoncelista. Abriu a porta e esperou que o animal voltasse. No copo tinha ficado um pouco de água. A morte olhou-a, fez um esforço para imaginar o que seria ter sede, mas não o conseguiu. Também não o teria conseguido quando teve de matar pessoas à sede no deserto, mas então nem sequer o havia tentado. O animal já regressava, abanando o rabo. Vamos dormir, disse o homem. Voltaram ao quarto, o cão deu duas voltas sobre si mesmo e deitou-se enroscado. O homem tapou-se até ao pescoço, tossiu duas vezes e daí a pouco entrou no sono. Sentada no seu canto, a morte olhava. Muito mais tarde, o cão levantou-se do tapete e subiu para o sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão no regaço.»

José Saramago em «As Intermitências da Morte» (Editorial Caminho)

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