sábado, 9 de julho de 2011

Tudo se transforma numa sombra cinzenta

«Diante da fachada estendia-se um pequeno canteiro, plantado de buxo e de outros arbustos (...) Mas a casa! Como era excêntrico o velho edifício! Para mim, que verdadeiro palácio de encantamento! Não havia realmente limites para os seus meandros - para as suas incompreensíveis subdivisões. Era difícil, em qualquer momento dado, dizer-se com segurança em qual dos dois andares nos encontrávamos. Entre um e outro compartimento, tínhamos sempre a certeza de deparar com três ou quatro degraus, ora a subir, ora a descer. Depois, as alas laterais eram inumeráveis, inconcebíveis, e tão imbricadas sobre si próprias que as ideias mais exactas que formávamos de tudo aquilo não diferiam muito da concepção que tínhamos do infinito. (...) Entre as maciças paredes desta venerável escola passei, todavia sem tédio nem desagrado, os anos do terceiro lustro da minha vida. O fértil cérebro da infância não precisa de um mundo exterior de incidentes para se manter ocupado ou entretido; e a monotonia aparentemente lúgubre da escola estava recheada de excitações mais intensas do que aquelas que, na maturidade da juventude, me proporcionou a luxúria ou, na idade adulta, o crime. Contudo, quer-me parecer que o meu desenvolvimeto psíquico inicial teve muito de invulgar (...) De modo geral, no comum dos homens, os acontecimentos da infância raramente deixam na idade madura quaisquer impressões definidas. Tudo se transforma numa sombra cinzenta - numa reminiscência débil e irregular - de confusa lembrança de ténues prazeres e de fantasmagóricas penas. Comigo não é isso que se passa. Devo ter sentido na infância com a energia própria de homem feito o que hoje descubro impresso na memória»

Edgar Allan Poe em Histórias Extraordinárias I (tradução de J. Teixeira de Aguilar, Publicações Europa-América)

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