sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Nos lugares onde a alma vive

«- Nelly, és capaz de guardar um segredo? (...)
- E é segredo que valha a pena? (...)
- É, e estou a ficar muito preocupada. Tenho de desabafar! Preciso de saber o que fazer... Hoje mesmo, o Edgar Linton pediu-me em casamento e eu dei-lhe uma resposta... Mas agora, e antes de te dizer se aceitei ou recusei, quero que me digas qual das respostas devia ter dado.
- Francamente, Miss Catherine, como quer que eu saiba? - respondi. (....)
- Aceitei, Nelly. Vá, diz lá. Achas que fiz mal? (...)
- Há muitas coisas a ponderar antes de poder responder a essa pergunta como deve ser - sentenciei. - Antes de mais nada, a menina ama mesmo Mr. Edgar?
- E quem não ama? Claro que sim - respondeu ela. (...)
- Por que é que o ama, Miss Cathy?
- Que disparate de pergunta. Amo-o, é tudo.
- Isso não chega. Tem de dizer-me porquê.
- Ora, porque é bonito e gosto de estar com ele.
- Isso é grave - foi o meu comentário.
- E porque é jovem e alegre.
- Continua a ser grave.
- E porque ele me ama.
- Isso não conta. Continue.
- E porque ele vai ficar rico e eu hei-de gostar de ser a mulher mais importante das redondezas e terei muito orgulho no marido que arranjei.
- Isso é o pior de tudo! E agora diga lá como é que o ama.
- Amo-o como toda a gente ama. Que parvoíce, Nelly.
- Não é parvoíce nenhuma. Vá, responda!
- Amo o chão que ele pisa e o ar que ele respira e tudo o que ele toca e as palavras que ele diz. Amo o seu aspecto, e os seus actos, amo-o inteiro, integralmente. Estás satisfeita? (...)
- E agora, vamos lá a saber por que se sente infeliz? O seu irmão vai aprovar; os pais dele não vão levantar objecções (...) vai trocar uma casa desorganizada e sem conforto por uma casa rica e respeitável; além disso, ama o Edgar e o Edgar ama-a a si. Parece correr tudo pelo melhor. Onde está então o problema?
- Aqui! E aqui! - respondeu Catherine, batendo com uma mão na testa e a outra no peito. - Nos lugares onde vive a alma. Sinto na alma e no coração que faço mal!
- Isso é muito estranho! Não estou a perceber.
- É esse o meu segredo. (...) 
A sua expressão tornou-se mais triste e grave e vi-lhe tremer as mãos entrelaçadas.
- Nelly, nunca tens sonhos estranhos? - disparou ela subitamente, depois de reflectir durante alguns minutos.
- De vez em quando - respondi.
- Eu também. Já tive sonhos que nunca mais me abandonaram e que me mudaram as ideias; espalharam-se dentro de mim como o vinho se espalha na água, e alteram a cor dos meus pensamentos. (...) 
Nessa altura eu era muito supersticiosa quanto a sonhos, e ainda sou, e Catherine tinha um brilho especial no olhar, algo que me fazia recear que eu pudesse extrair das suas palavras alguma profecia e prever alguma terrível catástrofe. (...)
- Seria degradante para mim casar-me agora com Heathcliff; por isso ele nunca saberá como eu o amo (...) Seja qual for a matéria de que as nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais, e a de Linton é tão diferente delas como um raio de lua de um relâmpago, ou a geada do fogo. (...) O meu amor por Linton é como a folhagem dos bosques: transformar-se-á com o tempo, sei-o bem, como as árvores se transformam com o Inverno. Mas o meu amor por Heathciff é como as penedias que nos sustentam: podem não ser um deleite para os olhos, mas são imprescendíveis.»

Emily Brontë em O Monte dos Vendavais (tradução de Ana Maria Chaves, Publicações Europa-América)

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