sábado, 10 de setembro de 2011

A Despedida da Carne

    «Gastaram-se minhas mãos e meus olhos em numerosos corpos,
  e sei somente
  que o olhar comprazido e as lentas carícias
  anulavam o mundo
  que não era o território precioso da carne.
  Nem o fumo das achas que arderam
  pode regressar.
  Adorei o que o tacto adorou. Sei-o como me sei.
  E é-me alheio e débil como se fosse imaginado.
  Continuo servo do deus que me concedeu uma vida
  pela qual a desdita pôde ser aceite.

        Hoje vêem os olhos, na presença da carne,
  igual o diferente,
  e o tacto do que oficia não acha nada
  que lhe conceda o frémito:
  meu corpo já é a chaga de uma sombra.
  O deus que tanto deu para tirar-mo,
  e ao qual nunca rezei nem fui blasfemo,
  também se desvanece como se fosse um corpo.

       Misericórdia estranha
  esta de recordar quanto perdi
  e amar ainda a sua inexistência.»


Francisco Brines em A Última Costa (tradução de José Bento, Assírio & Alvim)

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