quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"dois vezes dois quatro é uma parede"

«São onze e sete da noite, levanto a cabeça para a janela da cozinha e vejo, reflectido no vidro, um homem sentado à mesa a escrever, com uma das mãos no papel e a outra na testa. Na bancada laranjas, frascos transparentes que brilham, um frasco escuro entre os frascos transparentes
(o que terá dentro?)
e à minha volta e através de mim luzes de casas, árvores negras, a chuva que multiplica os movimentos e lhes muda as cores, ora azuis, ora amarelos, ora vermelhos quase. Agora é a mão que segura a caneta quem percorre a testa com os dedos, devagarinho. Volto a escrever e o homem escreve também. Eu escrevo isto. Ele, embora me imite em tudo, ia apostar que outra coisa qualquer. O quê? Pondo-me no seu lugar suponho que imagina ser eu quem escreve outra coisa qualquer. Provavelmente nenhum de nós escreve isto. Provavelmente escrevemos ambos outra coisa qualquer. Quantos serei?
Automóveis no viaduto, de faróis que se duplicam no alcatrão molhado. Os faróis dos automóveis redondos, os faróis no alcatrão molhado compridos. Coço a cabeça, o homem coça a cabeça. Tento não o olhar.
Não sei se acham estranho o que vou dizer mas há momentos em que sinto as pessoas que morreram ao pé de mim. Um peso de presenças como quando sabemos, por uma diferença nas costas, que nos observam ao passarmos. Voltamo-nos e é verdade: lá está uma cara fixa na gente que se desvia logo. A cara de um estranho ou de uma estranha que não tornaremos a encontrar. Há momentos em que me dá ideia que as coisas repetem o meu nome. O que farão as pessoas que morreram quando não estão comigo? Como conseguem adivinhar que estou aqui?
Quando uma pessoa escreve tudo fica tão esquisito: caminha-se sozinho num deserto de vozes, de lembranças que não nos pertencem, de desejos alheios. Dois e dois não são quatro, são vinte e dois. Dostoievski sustentava que dois vezes dois quatro é uma parede. Quando uma pessoa escreve instala-se nela uma outra lógica que nos assusta. Ao deixar o trabalho para o dia seguinte demora-se a reentrar no mundo dos outros, onde há torneiras, impostos e jornais. No telhado mesmo em frente ao meu um gato à chuva. Acaba por achar abrigo junto do algeroz.
Daqui a nada acabo isto, junto as folhas, levanto-me. Bato com elas na mesa para as acertar. O António Lobo Antunes do reflexo bate as suas no vidro para as acertar. Ao publicarem a crónica qual das nossas duas sairá?»

António Lobo Antunes em Quarto Livro de Crónicas (editora D. Quixote, edição ne varietur)

Sem comentários:

Enviar um comentário