quarta-feira, 5 de outubro de 2011

porque não?

« Atravessamos o presente de olhos vendados. No máximo, conseguimos pressentir e adivinhar aquilo que estamos a viver. Só mais tarde, quando se desata a venda e examinamos o passado é que nos apercebemos daquilo que vivemos e compreendemos o seu sentido.
Pensava eu que naquela noite estava a brindar ao meu sucesso e nem por sombras imaginava que era à abertura solene do meu fim.
E como não me apercebia de nada, acordei na manhã seguinte bem-humorado e, enquanto Klara ainda dormia feliz, peguei no artigo anexo à carta do Sr. Zaturecky e puz-me a lê-lo, na cama, com uma indiferença divertida.
O artigo, intitulado «Um mestre do desenho checo, Mikolas Ales» nem sequer merecia aquela meia hora distraída que lhe dediquei. Era uma chusma de lugares comuns amontoados sem o mínimo sentido de desenvolvimento lógico, sem uma única ideia original. Era uma inépcia, incontestavelmente. O que o Dr. Kalousek, redactor-chefe da revisão da revista O Pensamento Plástico (personagem, aliás, do mais antipático) me confirmou nesse mesmo dia por telefone. Ligou-me para a faculdade e disse-me: - Recebeste a dissertação do Sr. Zaturecky? Então faz-me o favor de escrever umas linhas dizendo que aquilo não tem pés nem cabeça; és óptimo nisso, saber ser duro, e ele há-de deixar-nos em paz.
Mas algo em mim se rebelou: porque havia de ser precisamente eu o carrasco do Sr. Zaturecky? Afinal quem é que recebia o salário de redactor-chefe? Ainda me lembrava muito bem que O Pensamento Plástico achara prudente recusar o meu ensaio; além do mais, o nome do Sr. Zaturecky estava para mim profundamente ligado à recordação de Klara, à garrafa de slivovice e a uma noite bem passada. E, finalmente, porquê negá-lo? É perfeitamente humano. Podia contar pelos dedos de uma mão, ou mesmo por um só dedo, as pessoas que me consideravam como a «única autoridade». Para quê tornar-me inimigo desse único admirador?»

Milan Kundera em O Livro dos Amores Risíveis (Publicações Dom Quixote, tradução de Luísa Feijó e Maria João Delgado)

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