quarta-feira, 16 de novembro de 2011

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«Com o auxílio dos seus dotes espirituais, sabia tentar uma jovem, sabia atraí-la a si, sem se preocupar com possuí-la, no sentido literal do termo... Posso imaginar como ele saberia conduzi-la ao ponto culminante em que tinha a certeza de ser ela capaz de tudo lhe sacrificar. Mas, tendo as coisas sido conduzidas até esse ponto, tudo rompia sem que, pelo seu lado, tivesse havido a menor constância, sem que uma só palavra de amor houvesse sido pronunciada e, muito menos, uma declaração de amor, uma promessa. No entanto, algo ficara impresso nela, como uma marca. E duplamente lhe sentia a infeliz o travo amargo, porque nada tinha em que o basear, e porque estados de espírito, de natureza muito diferente, a continuavam certamente a sacudir, num terrível e demoníaco sabá, sempre que exprimia as suas queixas, ora dela própria, perdoando-o, ora dele. E decerto perguntaria então a si próprio se não seria afinal tudo aquilo uma ficção, pois que apenas em sentido figurado se podia falar em realidade, no que àquelas relações dizia respeito. Não tinha ninguém a quem se confiar; porque, no fundo, ela nada tinha a dizer. Podemos contar um sonho uns aos outros, mas o que ela tinha para contar não era sonho, e sim realidade. Porém, logo que pretendia descrevê-la a alguém e sossegar o seu espírito inquieto, nada encontrava para dizer. E ela própria bem o sentia. Ninguém mais podia compreender do que se tratava, e tudo aquilo agia sobre ela com o seu peso inquietante. Estas vítimas eram pois de um tipo muito especial. Não era o caso de jovens que, desprezadas ou julgando-se desprezadas pela sociedade, se entregassem alta e saudavelmente ao seu desgosto ou, levando as coisas demasiado a peito, extravazassem o ódio ou o perdão. Nelas, nenhuma transformação visível se operara; eram respeitadas como sempre, as suas vidas decorriam semelhantes às de quaisquer outras e, contudo, haviam-se modificado, sem que quase conseguissem exprimir essa modificação, e sem que os outros a pudessem notar. A sua vida não fora quebrada nem desviada, como é o caso daquelas, antes se curvara dentro delas próprias; perdidas para os outros, em vão procuravam reencontrar-se.»

Soren Kierkegaard, Diário de um Sedutor (Editorial Presença, tradução de Carlos Grifo)

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