sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

impossível escapar

«Tomado, agora, por uma espécie de frialdade, contemplou as faces enquanto andava. Faces de mulheres de uma certa idade, peles queimadas, olhos brilhantes, cabeleiras secas e pintadas. Faces de homens mais velhos, faces cheias, caídas, engelhadas, de narizes caricaturais, crânios calvos. Face de jovem, narinas dilatadas, bigode preto, maxilares rectangulares. Braço tatuado. Face de mulher, ar inquisidor e malicioso, postura flexível, animal, sorriso. Faces de velhas, cinzentas, resmungonas. Faces de homens maduros, recuados, sobrancelhas espessas, risos inaudíveis. E as cabeças, os braços, os troncos desfilavam sem interrupção. Paoli, os olhos cravados em todos, avançava com o seu passo automático, sem pensar em nada; sabia que não era ele o dono, oh não, sabia que era a eles que pertencia, de corpo e alma, e a um de cada vez. Cada olhar que encontrava, ao progredir ao longo do passeio, cada nova ruga de rosto, cada face, cada orelha lançava um atilho, ou atirava n sua direcção um furtivo pseudópode que o ligava, que o esvaziava da sua substância, da sua vida. E passava assim de tentáculo em tentáculo, apalpado, rilhado, digerido, como uma presa num corredor de morte; como um alimento semelhante a uma bola de carne descendo suavemente ao longo do esófago, no tapete vivo de células ciliadas.»

Le Clézio em A Febre (Ulisseia Editora, tradução de Liberto Cruz)

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