sábado, 21 de abril de 2012

porque será?

«Porque será que os tímidos sorriem atrás de si mesmos protegendo com o corpo a vergonha de estarem connosco, porque será que ao sorrir permaneço ao fundo, à entrada da sala, tão distante de mim, vendo-me de costas a cumprimentar as pessoas quer dizer oferecer-lhes uma bochecha que não é bochecha dado que a minha cara se encontra noutro lado a dizer palavras que não consigo ouvir, a aproximar cinzeiros, a concordar, a instalar-se de leve, sempre a mudar de nádega, no tamborete que parece queimá-la, que me queima de facto à medida que procuro um auxílio que não chega, a minha mãe, a Ana, o meu pai não, incapaz de auxiliar fosse quem fosse, uma ocasião em que invadiram a sala dei com ele a apequenar-se num reposteiro a suplicar
     - Vai-te embora
     enquanto tentava soltar o fecho da janela e desaparecer no jardim mas o fecho a denunciá-lo a toda a gente
     - Reparem onde o marido da Amélia se escondeu
     de modo que regressar à sala e às visitas que principiam a olhar-se e a olhar-me
     - Sentes-te bem Clarinha?
     dizer-lhes que me sinto bem, interessar-me, fazer perguntas, dar-me conta que a franja se descolou do tapete e emendar com a biqueira descolando-a mais e eles reparando a simular que não reparam, o mundo inteiro concentrado no tapete ajudando-me a descobrir defeitos que não notara em mim, um ponto descosido, o ferro de engomar que queimou na blusa um triângulo castanho, o cabelo que empurro para trás com a impaciência do braço
     o cabelo que a Maria Clara empurra para trás e eu distante, à entrada da sala, preocupada com ela e incapaz de ajudar, de a levar comigo escutando a minha mãe que essa sim, civilizada, essa sim, desenvolta
     - Não chegaram há muito tempo pois não peço desculpa que horror
     as franjas do tapete perfeitíssimas, os móveis encerados, o que parecia uma fractura do tecto somente um ramo de trepadeira que o capricho do sol mudava na varanda, para meu espanto o jardim bem tratado, o menino de barro sem uma única alga, afinal não somos pobres, não devemos no talho, não nos cortaram a electricidade e respeitam-nos»

António Lobo Antunes em Não entres tão depressa nessa noite escura (Dom Quixote)

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