sábado, 12 de maio de 2012

a morte

«Hélène! Tem ainda um nome: não será já possível chamá-la? O ar sobe com esforço dos pulmões até aos lábios, desce rangendo dos lábios para os pulmões, a vida arqueja e sofre, e entretanto ela ainda aí está inteira, aí permanecerá inteira até ao último momento: não queres empregá-lo noutra coisa que não morrer? Cada batida do seu coração a aproxima da sua morte. Pára. O coração dela continua a bater, inexoravelmente; quando deixar de bater, ela estará morta, será tarde de mais. Pára imediatamente, pára de morrer. 
Hélène abriu os olhos; ele tomou-a nos braços. Aqueles olhos abertos já não viam. Hélène! Já não ouvia. Qualquer coisa permanece que não está ainda ausente de si própria, mas está já ausente da terra, ausente de mim. Estes olhos são ainda um olhar, um olhar congelado que já não é olhar de nada. A respiração parou. Ela tinha dito: Estou contente por estares aí; mas eu não estou aí; sei que se passa qualquer coisa, mas é algo a que não posso assistir; algo que não se passa nem aqui nem noutro lado: para além de toda a presença. Ela respirou uma vez ainda; os olhos velaram-se-lhe; o mundo separa-se dela, o mundo afunda-se; e entretanto ela não está a deslizar para fora do mundo; é no interior do mundo que ela se transforma nesta morta que tenho nos braços. Um esgar repuxa-lhe o canto dos lábios. Já não há o seu olhar. Ele desceu-lhe as pálpebras nos olhos inertes. Querido rosto, querido corpo. Era a tua fronte, eram os teus lábios. Deixaste-me, mas posso ainda amar a tua ausência; a ausência conserva a tua cara; aí está a tua figura ainda; presente nessa forma imóvel. Fica, fica comigo...»

Simone de Beauvoir em O Sangue dos Outros (Editora Dom Quixote, tradução de Miguel Serras Pereira)

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