segunda-feira, 9 de julho de 2012

é simples

«É simples provar a não-existência de Deus. Impossível admitir, por exemplo, que um Iavé sério, todo sabedoria e omnipotência, pudesse empregar o seu tempo de maneira tão inane como seja brincar com marionetas e - coisa ainda mais incongruente - restringisse a brincadeira às horrendas leis triviais da mecânica, da química, da matemática, sem nunca - - vejam bem, nunca! - mostrar a cara, permitindo-se porém espreitadelas sub-reptícias e circunlocuções, e as murmurações sorrateiras (autênticas revelações!) de verdades controversas, a coberto de alguma amável histérica.
Toda esta questão divina é, penso eu, um imenso embuste de que os padres por certo não têm culpa; os padres são também vítimas. A ideia de Deus foi inventada no dealbar da história por um velhaco de génio; de certo modo, há um excessivo fedor a humanidade nessa ideia, para que seja plausível a sua origem celeste; com o que não quero insinuar que seja fruto de grosseira ignorância; esse meu velhaco é competente em folclore celestial e a verdade é que até nem sei que variação do Céu é preferível: se o deslumbramento dos anjos vigilantes abanando as suas asas, se o espelho convexo, em que um professor de física ufano de si encolhe, vai ficando cada vez mais pequeno. Há outra razão para eu não poder, nem querer acreditar em Deus: o conto de fadas sobre ele não é bem meu, pertence a outrem, a todos os homens; está ensopado dos eflúvios de mau cheiro de milhões de outras almas que andaram um pouco a girar por aí ao sol e depois se queimaram; está repleto de medos primordiais; dá eco a um coro confuso de inúmeras vozes que tentam afogar-se mutuamente; ouço nele o ribombar e o lamento do órgão, o rugido do diácono ortodoxo, a melopeia do chantre, o lamento dos negros, a eloquência fluente do pregador protestante, gongos, trovões, espasmos de mulheres epilépticas; vislumbro através dele as páginas pálidas de todas as filosofias como espuma de ondas há muito desfeitas; é-me estranho, odioso e absolutamente inútil.
Se eu não for senhor da minha vida, sultão do meu ser, então não há lógica humana, não há transe do êxtase humano que me force a achar menos disparatada a minha posição infinitamente disparatada: a de escravo de Deus; não, nem sequer seu escravo, somente um fósforo riscado por nada e depois soprado por alguma criança inquisitiva, terror dos seus brinquedos. Não há, porém, motivo para ansiedade: Deus não existe, nem a vida depois da nossa morte, sendo o segundo papão tão fácil de descartar como o primeiro.»

Vladimir Nabokov em Desespero (Editora Teorema, tradução de Telma Costa)


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