quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Dimensões Reveladoras

     «Havia dois meses, disseram-me, que Carlos se dava ao prazer de ler os franceses do século XIX à luz de velas, para o que utilizava um candelabro de prata. Tempos atrás tínhamos conversado sobre isso porque também eu adoro ler Goethe enquanto no gira-discos soa uma ópera de Wagner ou, por exemplo, acompanhar Baudelaire com Debussy. Faz parte da viagem e posso dizer-lhe que o prazer é superior, em todos os sentidos. Talvez saiba que quando lemos em voz baixa, emitimos o som das letras numa frequência imperceptível. Mas não calamos o som. A voz está lá, baixa, nunca ausente. Executa a linha como um instrumento a partitura e posso garantir-lhe que é tão essencial quanto o sentido da vista. Isso cria um tom, uma melodia que percorre as palavras e os fraseados, de modo que quando se acrescenta música, em volume suave, gera-se um contraponto harmónico na profundidade do tímpano entre a sua própria voz e a dos altifalantes. Se se ultrapassarem uns decibéis, a música cobre a sua voz e mata a do texto. E não só, engana-o. Uma prosa má, acompanhada por um bom concerto, pode parecer muito melhor do que é. 
     Brincávamos com a ideia de acrescentar a luz das velas, só no caso das obras anteriores à luz eléctrica. Pode parecer-lhe uma excentricidade de todo desnecessária, mas experimente iluminar um quadro a óleo com velas e irá reparar que ganha um aspecto completamente diferente do do costume, por melhor iluminado que seja. É um quadro novo, as sombras ganham vida e dir-se-ia que já não há uma diferença essencial entre a luz que nasce dos pigmentos e do óleo e o quarto onde se encontra. Os espaços prolongam-se e ingressamos numa dimensão reveladora.»  

Carlos María Domínguez em A Casa de Papel (tradução de Henrique Tavares e Castro, ASA)

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