sábado, 30 de março de 2013

Valeria a pena ter vivido?

«O nosso último passeio foi para os lados de Santa Justa, pelas encostas de lousa. Sentámo-nos à sombra de uma árvore perto de um muro de cercar, e ali ficámos tendo como único indício de que o mundo se movia os comboios que de vez em quando passavam apitando numa curva em trincheira. Depois de um enorme, de vagões vazios, peguei num bocado de lousa e joguei-o na cerca: a lousa fendeu e pareceu-me ver fóssil; engraçado se fosse fóssil; e era mesmo fóssil: trilobite.
- Olhe o que ficou deste bicho, Teresinha. O bicho morreu aqui: depois veio mais terra por cima e ele ficou preso e deu o jeito dele à pedra.
Era tudo quanto eu lhe podia explicar.
- Foi há muito tempo?
- Há muito tempo, Teresinha. Não havia ainda gente no mundo.
- Então não veio tudo ao mesmo tempo, bichos e gente?
- Parece que não, Teresinha. Gente foi a última novidade a aparecer.
- Então ninguém viu este bicho vivo?
- Ninguém, Teresinha. Os primeiros a vê-lo fomos nós, e morto. Nem o bicho; só a pedra do bicho.
- Então podia ficar para aí sem ninguém nunca dar por ele.
- Claro que podia.
- Foi uma sorte a gente vir cá e o senhor jogar a pedra.
- Porquê, Teresinha?
- O senhor não acha que era triste se ninguém desse por ele? Para que é que valia a pena ter vivido?»

Agostinho da Silva em Herta Teresinha Joan (Biblioteca Editores Independentes)

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