quinta-feira, 18 de abril de 2013

Como um barco balançando nas palavras

«Neruda deteve o olhar no resto das cartas, e a seguir entreabriu o portão. O carteiro estudava as nuvens com os braços cruzados sobre o peito. Veio pôr-se a seu lado e espetou-lhe um dedo num ombro. Sem se descompor, o rapaz ficou a olhá-lo.
- Voltei a abrir, porque suspeitei que continuavas aqui.
- É que fiquei a pensar.
Neruda apertou os dedos no cotovelo do carteiro, e conduziu-o com firmeza na direcção do candeeiro onde tinha encostado a bicicleta.
- E para pensar ficas sentado? Se queres ser poeta, começa por pensar caminhando. (...) Agora vais até à calheta pela praia, e enquanto observas o movimento do mar, podes ir inventando metáforas.
- Dê-me um exemplo!
- Olha este poema: «Aqui na Ilha, o mar, e quanto mar. Sai de si mesmo, a cada instante. Diz que sim, que não, que não. Diz que sim, em azul, em espuma, em galope. Diz que não, que não. Não pode estar quieto. Chamo-me mar, repete pegando numa pedra sem conseguir convencê-la. Então com sete línguas verdes, de sete tigres verdes, de sete cães verdes, de sete mares verdes, percorre-a, beija-a, humedece-a, e bate no peito repetindo o seu nome.» - Fez uma pausa satisfeito. O que achas?
- Estranho.
- «Estranho.» Que crítico mais severo és tu!
- Não, Don Pablo. Estranho não é o poema. Estranho é como eu me sinto quando recitou o poema.
- Querido Mario, vamos a ver se te despachas um pouco, porque não posso passar a manhã toda a desfrutar da tua conversa.
- Como se pode explicar? Enquanto dizia o poema, as palavras iam de cá para lá...
Como o mar, claro!
- Sim, pois, moviam-se tal como o mar. Isso é o ritmo.
- E eu senti-me estranho, porque com tanto movimento enjoei.
- Enjoaste?
- Claro! Eu ia como um barco balançando nas suas palavras.
As pálpebras do poeta despegaram-se lentamente.
- «Como um barco balançando nas minhas palavras.»
- Claro!
- Sabes o que fizeste, Mario?
- O que foi?
- Uma metáfora.
- Mas não vale, porque me saiu por simples causalidade.
- Não há imagem que não seja casual, filho.»

Antonio Skármeta em O Carteiro de Pablo Neruda (tradução de José Colaço Barreiros, Teorema)

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