domingo, 19 de maio de 2013

Uma coisa a menos para adorar

«Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico 
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco 
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste 
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome»

José Tolentino Mendonça em Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI (selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora)

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