sábado, 8 de junho de 2013

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«Há pessoas que, como tigres, têm a avidez do sangue, anseiam por lambê-lo. Quem experimentou uma vez tal poder, tal domínio ilimitado sobre o corpo, sobre o sangue e sobre o espírito de um ser humano, criado como ele próprio por Deus, seu irmão pela lei de Cristo; quem experimentou o poder e a absoluta possibilidade de ofender com a pior das humilhações outra criatura que traz em si a imagem de Deus - tal indivíduo deixa de ser senhor das suas sensações. A tirania é um hábito; como tal, tem capacidade de evoluir e evolui, acabando por se tornar uma doença. Afirmo que o melhor dos homens pode ficar bruto e cretino até ao estado animalesco por força do hábito. O sangue e o poder embriagam: desenvolve-se a rigidez, a degradação; os fenómenos mais anormais tornam-se acessíveis e, por fim, doces à mente. O homem e o cidadão perecem no tirano para sempre, e o regresso à dignidade humana, ao arrependimento, ao renascimento tornam-se quase impossíveis para ele. Além disso, o exemplo, a própria possibilidade do arbítrio são contagiosos para toda a sociedade: um tal poder é sedutor. A sociedade que se mostre indiferente a este fenómeno é contaminada nos seus alicerces. Numa palavra, o direito de castigo corporal que uma pessoa tem sobre outra é uma das chagas da sociedade, e é, nela, um dos mais fortes meios de extermínio de qualquer germe, de qualquer tentativa de civismo, é a base certa da sua inevitável corrupção.»

Fiódor Dostoiévski em Cadernos da Casa Morta (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Editorial Presença)

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