terça-feira, 9 de julho de 2013

um animal social


«Sendo geneticamente originário de Daniel1, possuo, como é evidente, os mesmos traços, o mesmo rosto; até a maior parte das nossas mímicas se assemelham (embora as minhas, vivendo num ambiente não social, sejam naturalmente mais limitadas); mas é-me impossível imitar essa súbita distorção expressiva, acompanhada de sons característicos, a que ele chamava riso; nem sequer consigo imaginar tal mecanismo. 

As notas dos meus antecessores, de Daniel2 a Daniel23, testemunham, em geral, a mesma incompreensão. Daniel2 e Daniel3 ainda se declaram capazes de reproduzir o fenómeno, sob a influência de certos licores; mas, para Daniel4, já se trata de uma realidade inacessível. Foram produzidos vários trabalhos sobre o desaparecimento do riso nos neo-humanos; todos concordam em reconhecer que foi rápido.

Uma evolução análoga, se bem que mais lenta, pôde ser observada em relação às lágrimas, outro traço característico da espécie humana. Daniel9 assinala ter chorado numa ocasião bem precisa (a morte acidental do cão Fox, electrocutado pela barreira de protecção); a partir de Daniel10, nenhuma menção. Assim como o riso é justamente considerado por Daniel1 sintomático da crueldade humana, as lágrimas surgem, nesta espécie, associadas à compaixão. Ninguém chora unicamente por si mesmo, observa, algures, um autor humano anónimo. Estes dois sentimentos, a crueldade e a compaixão, não têm obviamente muito sentido nas condições de absoluta solidão em que se desenvolvem as nossas vidas. Alguns dos meus antecessores, como Daniel13, manifestam no seu comentário uma estranha nostalgia desta dupla perda; em seguida, esta nostalgia desaparece para dar lugar a uma curiosidade cada vez mais esporádica; hoje em dia, como testemunham todos os meus contactos por rede, podemos considerá-la praticamente extinta.»

Michel Houellebecq em A Possibilidade de Uma Ilha (tradução de Isabel St. Aubyn, Editora D. Quixote)

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