quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Um dia devia aprender a tocar

«- Sabe o senhor aonde eu gostava de ir hoje?
Calculem! Teresinha com iniciativas.
- Não, Teresinha; ora diga lá.
- À ponte. Queria ver o senhor deitar outra vez papéis às andorinhas.
Fomos à ponte, mas não sei o que dera nas andorinhas. Voavam longe e acabei por migar duas folhas inteiras de apontamentos sem que uma só viesse dar suas ligeiríssimas bicadas.
- Ora viu como é a vida, Teresinha? Queríamos andorinhas e não há andorinhas.
- Mas eu gostei mesmo assim; o senhor não viu como o rio estava bonito?
- Não reparei Teresinha.
- E o senhor não quer reparar? – perguntou ela, quando já íamos no fim da ponte.
- Agora não vale a pena voltar para trás.
Pareceu-me que, pela primeira vez, ficara um pouco triste comigo. De modo que, com muita paciência, tornei a meio da ponte e reparei no rio. Estava lindo mesmo, de um verde escuro e denso e um faiscar de sol em cada crista de ondulação, logo descendo, fugindo, voltando, num lucilar de espelho facetado cujas facetas se movessem. Um barco de toldo passou com gente em festa; e de cima, através do ar puro, ouvia-se música de harmónio. Eu disse para ela, já muito manso:
- A Teresinha um dia devia aprender a tocar.
- Porque é que o senhor diz isso?
- Porque tocar ainda é a melhor maneira de estar ao pé das pessoas sem lhes pesar. E de lhes ficar na lembrança para sempre.»

Agostinho da Silva em Herta Teresinha Joan (Biblioteca Editores Independentes)

1 comentário:

Ana Pessoa disse...

Não sabia que Agostinho da Silva escrevia ficção. Gostei deste trecho.

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