segunda-feira, 21 de outubro de 2013

vida perene (?)

«Eva acorda no meio da noite e diz "trotinete". Há estes disparates para aceitar.
Eva pensa que, se continuar na cama tempo suficiente, acabará por morrer. Há estes disparates para aceitar.
Morrer não é tão fácil como se pensa. As pessoas foram concebidas para resistir. Não basta não comer, ou ficar perdido nos Andes. É provável sobreviver. Deus deu vida às pessoas, não para pô-las à prova, mas para mostrar como é poderoso.
Eva tem acessos. Um boião de gelado. Manda comprar revistas. Passa horas à procura duns versos de Camões. Abraça o irmão como se ele tivesse voltado duma guerra. Às vezes canta. Pergunto se isto é comportamento de quem vai morrer.
"Eu dou-te a trotinete!", diz Deus, bêbado de alegria, quando a ouve.
As pessoas estão mergulhadas na vida - não se consegue tirá-las de lá. Piscina de água velha, com uma camada pastosa no fundo, que os pés pisam sem querer. 
Alguns nadam. Eva flutua. Há quem não repare nos dejectos e nas pétalas, ou só nos dejectos, ou só nas pétalas. Em cada minuto a atenção é diferente. Não se pode estar desatento durante muito tempo. Cinco sentidos são um balúrdio. E o sexto sentido é ler: "Cobras e tostões, sinal de terra".»

Miguel Esteves Cardoso em A Vida Inteira (Assírio & Alvim)

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