sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

distante

«À noite, nas montanhas que os cercavam, mesmo às dez horas, só a terra é escura. O céu cinzento-claro e o verde dos montes. 
- Eu estava farta de passar fome. De ser um mero objecto de desejo. De maneira que comecei a esquivar-me aos convites para sair, aos passeios de jipe, aos namoros. Não queria ser a última pessoa com quem eles dançavam antes de morrerem... e passei a ser considerada uma snobe. Trabalhava mais do que as outras. Dois turnos seguidos, debaixo de fogo inimigo, eu fazia tudo por eles, até as arrastadeiras despejava. Tornei-me uma snobe porque me recusava a sair com eles e a gastar-lhes o dinheiro. Queria voltar para casa, e não tinha ninguém em casa. E estava farta da Europa. Farta de andarem nas palminhas comigo por ser mulher. Namorei um homem, e ele morreu, e a criança morreu. Quer dizer, a criança não morreu por si, fui eu quem a destruiu. Depois disso retraí-me tanto que ninguém se conseguia aproximar. Nem para me chamar snobe, nem para me falar na morte de quem quer que fosse. Depois conheci-o a ele, ao homem enegrecido pelas queimaduras. Que afinal de contas era um inglês.
Há muito tempo, David, que não penso em me ligar a um homem.»

Michael Ondaatje em O Doente Inglês (tradução de Ana Luísa Faria, Colecção Mil Folhas do Público)

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