segunda-feira, 20 de abril de 2015

Quem constrói mais sólido?

«PRIMEIRO CAMPONÊS - Vai ter um enterro cristão, quem procurou por si mesma a hora da salvação?
SEGUNDO CAMPONÊS - Já te disse que sim. Portanto, abre-lhe já a cova. (...)
PRIMEIRO CAMPONÊS - Como pode isso ser, a menos que se tenha afogado em defesa própria?
SEGUNDO CAMPONÊS - Pois foi assim que resolveram.(...)
PRIMEIRO CAMPONÊS - Dá-me licença. Aqui está a água... bem! Aqui está o homem... bem. Se o homem vai para esta água e se afoga, é, quer se queira quer não, porque lá foi, repara bem. Mas se a água vier para ele e o afogar, não é ele que se afoga. (...)
SEGUNDO CAMPONÊS - Queres saber toda a verdade? Se não se tratasse de uma fidalga, era enterrada sem enterro cristão.
PRIMEIRO CAMPONÊS - Agora é que disseste bem. E tanto pior para os fidalgos, se têm mais liberdade neste mundo para se afogarem ou se enforcarem que os seus irmãos de Cristo. Vamos, dá cá a enxada. Não há velhos fidalgos se não os jardineiros, os cavadores, os coveiros. Continuam o ofício de Adão. 
SEGUNDO CAMPONÊS - Ele era fidalgo?
PRIMEIRO CAMPONÊS - Foi o primeiro a usar armas. 
SEGUNDO CAMPONÊS - Mas ele não tinha nenhuma.
PRIMEIRO CAMPONÊS - Quê? És pagão? Como entendes a Escritura? A Escritura diz que Adão cavava. Podia cavar sem armas? Vou fazer-te outra pergunta. Se não responderes a propósito, confessa-te...
SEGUNDO CAMPONÊS - Vá lá.
PRIMEIRO CAMPONÊS - Quem é que constrói mais sólido que o pedreiro, o carpinteiro, ou o construtor de navios? (...)
SEGUNDO CAMPONÊS - Santa missa! Não sei
PRIMEIRO CAMPONÊS - Não espremas mais os miolos, porque burro velho não anda mais depressa com pancada. E quando tornarem a fazer-te esta pergunta, responde: «Um coveiro.» As casas que ele faz duram até ao dia do juízo.»

William Shakespeare em Hamlet (tradução de Ersílio Cardoso, Publicações Europa-América)

quinta-feira, 16 de abril de 2015

el centro del centro

el centro
de un poema
                        es otro poema
el centro del centro
                        es la ausencia

en el centro de la ausencia
mi sombra es el centro
del centro del poema


Alejandra Pizarnik em Antologia Poética (ocorreiodosnavios)

sábado, 11 de abril de 2015

Caía em toda a parte

«As lágrimas vieram-lhe em maior quantidade e, naquela escuridão completa, imaginou ver a sombra de um jovem, de pé, debaixo de uma árvore. Outras sombras se aproximavam. A sua alma chegara àquela região onde habitam os vários hóspedes da morte. Tinha consciência deles, mas não compreendia a sua existência vacilante. A própria identidade estava a sumir-se num mundo impalpável; o sólido mundo onde aqueles mortos tinham vivido estava a dissolver-se e a desvanecer-se.
Umas leves pancadas fizeram-no voltar-se para a janela. Recomeçara a nevar. Observou a queda oblíqua dos flocos contra o candeeiro. Chegara a hora de empreender a sua viagem para oeste. Sim, os jornais tinham razão: a neve era geral em toda a Irlanda... Caía em toda a parte, na planície central e escura, nos montes, no Bog of Allen e longe, para o lado do oeste, caía docemente nas ondas escuras do Shannon. Também caía em toda a parte, no velho cemitério, lá onde fora enterrado Michael Furey. Batia com força nas velhas cruzes e nos túmulos, no portão da entrada e nos estéreis espinheiros. A sua alma desmaiava vagarosamente, enquanto escutava a neve tombando com suavidade sobre o universo, sobre todos os vivos e mortos.»

James Joyce em Gente de Dublin (tradução de B. de Carvalho, RBA Editores)

terça-feira, 7 de abril de 2015

Alemão Honesto

«Alguns minutos depois Pirogov viu Schiller que saía com olhos sonolentos, mal acordado da bebedeira da véspera. Ao ver o oficial, lembrou-se, como de um sonho brumoso, do episódio do dia anterior. Não se lembrava do acontecimento na sua forma exacta, mas sentia que tinha feito asneira e, por isso, recebeu o oficial com um ar muito severo.
- Pelas esporas não posso levar menos de quinze rublos - disse, no desejo de se ver livre de Pirogov, porque, como alemão honesto, tinha vergonha de olhar na cara alguém que o vira num preparo indecente. Schiller gostava de beber sem testemunhas, com dois ou três amigos, e nessas ocasiões fechava a porta até aos próprios empregados.
- Porquê tão caro? - disse carinhosamente Pirogov.
- Trabalho alemão - respondeu Schiller com sangue-frio, afagando o queixo. - Um russo aceita o trabalho por dois rublos.
- Está bem, para provar que gosto de si e quero travar conhecimento consigo, pago-lhe os quinze rublos. 
Schiller reflectiu durante um minuto: como alemão honesto, sentiu alguma vergonha. Tentando dissuadir o cliente, declarou que não poderia executar o trabalho em menos de duas semanas. Pirogov, porém, aceitou sem discutir.
O alemão quedou-se pensativo, matutando na maneira de fazer realmente um trabalho tão perfeito que valesse de facto quinze rublos. (...)
Fazia todos os esforços para terminar o mais depressa possível o trabalho; finalmente, as esporas ficaram prontas.
- Ah, que trabalho perfeito! - gritou o tenente Pirogov ao ver as esporas. - Meu Deus, que bem feitas! Nem o nosso general tem esporas destas.
O sentimento da presunção encheu a alma de Schiller. os olhos dele puseram-se a irradiar alegria e, assim, reconciliou-se por completo com Pirogov. «Oficial russo é homem inteligente» - pensava ele.
- Portanto, o senhor pode fazer também o engaste para um punhal ou outras coisas?
- Oh, claro que posso - respondeu Schiller com um sorriso.»

Nikolai Gógol em Avenida Névski (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Assírio & Alvim)

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Que ideia tão russa!

«- Quanto a mim, a roleta não foi inventada senão para os russos - repliquei eu; e como o francês disparasse um risinho de troça, insisti dizendo que a verdade estava com certeza do meu lado porque, ao afirmar que os russos eram jogadores, censurava-os mais do que os louvava, e assim era digno de crédito.
- Em que se apoia a sua opinião? - perguntou-me o francês.
- No facto de que, no decurso da história, a faculdade de aforrar capitais entrou no catecismo das virtudes e dos méritos do homem ocidental civilizado, tornando-se talvez o principal ponto de fé. Ao passo que o russo não só é incapaz de aforrar capitais, mas até os gasta a torto e a direito sem o menor sentido das conveniências. Seja como for, nós, russos, também temos necessidade de dinheiro - continuei. - Por isso recorremos sofregamente a processos como a roleta, com as quais se pode ganhar uma fortuna em duas horas, sem trabalhar. Isso fascina-nos, e como jogamos à toa, sem nos constrangermos, acabamos por perder!
- Em parte é verdade - concordou o francês com ar convencido.
- Não, é falso, e você deveria ter vergonha de falar assim do seu próprio país - atalhou o general, severo e sentencioso.
- Desculpe - disse eu -, mas qual será mais abjecto: a extravagância russa ou o sistema alemão, que consiste em juntar dinheiro graças a um trabalho honesto?
- Que ideia tão chocante! - exclamou o general.
- Que ideia tão russa! - volveu, divertido, o francês.
Pus-me a rir, morto por espicaçá-los o mais que pudesse. (...)
- Aqui, cada casa tem o seu Vater horrivelmente virtuoso e extraordinariamente honesto.(...) Trabalham todos como bois e poupam como judeus. Admitamos que o pai já amealhou certa quantia e tenciona legar ao filho mais velho o ofício ou a terra: não dotará a filha, que não casará. Venderão o filho mais novo como criado ou soldado e aumentarão com esse dinheiro o património. (...) E tudo resulta da honestidade, duma honestidade levada ao extremo e tão habilmente que o filho mais novo, que venderam, julga que foi vendido por honestidade. (...) E depois? Pois muito bem, o filho mais velho não é mais feliz: algures, lá longe, espera-o uma Almachen, a eleita do seu coração, mas não pode casar com ela porque não amealharam ainda bastantes florins. Também eles aguardam, virtuosamente, sinceramente, e caminham para o sacrifício de sorriso nos lábios. (...) Finalmente, ao cabo de vinte anos, a fortuna cresceu, os florins foram honrada e vituosamente juntos. O Vater abençoa a união do filho maior de quarenta anos (...) Nessa ocasião, verte lágrimas, prega ainda uma lição de moral e entrega a alma ao criador. O filho mais velho transforma-se, por sua vez, num Vater virtuoso e a história recomeça. (...) Nada há tão sublime. É desse ponto de vista que começam a julgar o mundo e a castigar os culpados, quero dizer, os que diferem deles por um pouco que seja.»

Dostoievski em O Jogador (tradução de Delfim de Brito, Bárbara Palla e Carmo - Biblioteca Visão)

segunda-feira, 30 de março de 2015

De influências sei, e de muitas

«- Acho que o senhor se contradiz.
- De que modo? - perguntou o pintor pacientemente, ao mesmo tempo que, sorrindo, se inclinava para trás.
Este sorriso despertou em K. o sentimento de que começava a descobrir contradições, não nas palavras do pintor, mas no próprio procedimento judicial. Contudo, apesar disso não recuou e disse:
- O senhor começou por dizer que a justiça rejeitava quaisquer provas, depois passou a afirmar que só a justiça pública procedia dessa maneira, e agora chega mesmo a dizer que o inocente perante o tribunal não precisa de auxílio algum. Já aí se pode ver uma contradição. Além disso, declarou há pouco que se podia influenciar pessoalmente os juízes, mas nega que a absolvição real, como lhe chama, possa ser obtida por meio de influências pessoais. Nisto reside a segunda contradição.
- Essas contradições explicam-se facilmente - disse o pintor. - Trata-se de duas coisas diferentes: uma o que a Lei diz, a outra o que eu aprendi por experiência própria. (...) Não sei de nenhuma absolvição real; porém, de influências sei, e de muitas. É possível, naturalmente, que em todos os casos que conheço não tivesse havido inocentes. Mas isso não é improvável? Tantos casos e nem um inocente? Já em pequeno eu escutava o meu pai com toda a atenção quando ele me falava de processos; também os juízes que iam ao atelier dele falavam da justiça, (...) mal tinha a possibilidade de ir ao tribunal aproveitava-a sempre; ouvi um sem-número de processos e segui-os até onde era possível; todavia, tenho de confessar; nunca assisti nem a uma só absolvição real.
- Portanto a nenhuma absolvição - disse K., como se estivesse a falar consigo próprio e com as suas esperanças. - Isso vem confirmar a opinião que eu tinha acerca da justiça. Deste lado também é inútil. Um único carrasco podia substituir toda a justiça.»

Franz Kafka em O Processo (tradução de Gervásio Álvaro, Bárbara Palla e Carmo - Biblioteca Visão)

quinta-feira, 26 de março de 2015

Um som

«Está tudo fechado em Bat-Yam à excepção da farmácia de serviço,
onde brilha a luz fria do néon. Atrás do balcão, um judeu italiano,
de bata branca e já não muito jovem, está há três horas a ler
da primeira à última linha o jornal que, entretanto,
passou a ser de ontem. Interroga-se mas sabe que não há resposta.
Da algibeira da bata tira uma caneta
com a qual bate quatro ou cinco vezes no rebordo da chávena vazia.
Não é o som que o surpreende mas o silêncio renovado»

Amos Oz em O mesmo mar (tradução de Lúcia Liba Mucznik, Edições ASA)

sábado, 21 de março de 2015

Lutando contra os elementos em fúria

«KENT - Quem está aí, além do mau tempo?
NOBRE - Alguém cujos pensamentos estão tão tumultuosos como a natureza.
KENT - Conheço-vos. Onde está o rei?
NOBRE - Lutando contra os elementos em fúria: ordena aos ventos que empurrem a terra para dentro do mar ou às águas encapeladas que engulam os continentes, para que as coisas sejam alteradas ou cessem de existir»

William Shakespeare em Rei Lear (tradução de Margarida Pratas, Europa-América)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Mestre, são plácidas

«Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos.
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o Sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.»


Ricardo Reis em Odes (Edições Ática)

sábado, 27 de setembro de 2014

Ave

«Uma ave agonizante
entrou-te no quarto,

apenas uma sombra
que se enlaça
noutra:

assim definiste
a memória,

a cidade
que se mineraliza
quando
rodeias
essa sombra-ave

com os dedos
apavorados.»


Luís Quintais em Mais Espesso que a Água (Edições Cotovia)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Respirou, espirrou e gritou

«Embora me sinta pouco disposto a sustentar que seja para um homem um favor extraordinário da fortuna nascer num asilo de mendicidade, devo todavia dizer que, neste caso particular, era o que de melhor poderia ter sucedido a Oliver Twist. O facto é que só com grande trabalho se conseguiu decidir Oliver a desempenhar as suas funções respiratórias, exercício fatigante, mas que o hábito tornou necessário ao bem-estar da nossa existência: durante algum tempo conservou-se estendido sobre um pequeno colchão de lã ordinária, fazendo esforços para respirar, hesitando, por assim dizer, entre a vida e a morte, mas inclinando-se muito mais para esta. Se, durante esse pequeno espaço de tempo, Oliver estivesse rodeados de avós solícitas, de tias inquietas, de amas experientes e de médicos de muito saber, teria infalivelmente perecido; mas como não havia ali ninguém, salvo uma pobre velha, que pouco via em consequência duma ração de cerveja fora do vulgar, e um cirurgião municipal pago ao ano para fazer este serviço, Oliver e a Natureza lutaram frente a frente. O resultado foi que, após alguns esforços, Oliver respirou, espirrou, e avisou os habitantes do asilo do novo encargo que ia pesar sobre a paróquia, soltando um grito tão forte quanto razoavelmente se poderia esperar duma criança do sexo masculino que só havia três minutos e um quarto se achava de posse desse tão útil dom que se chama a voz.»
 
Charles Dickens em Oliver Twist (tradução da Livraria Lello & Irmão, RBA Editores)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Não posso adiar o amor

«Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração»


António Ramos Rosa em Matéria de Amor (Editorial Presença)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A memória é uma prisão

«A memória é uma prisão. Aprisiona quem lembra e quem é lembrado; impossibilita a verdadeira liberdade que só os que não lembram conhecem.
Lembrar é recuperar passados e partir para o futuro sempre com bagagem e peso a mais. Só quem esquece é realmente livre: livre de passado, de presente e de futuro.
A prisão pela memória entorpece. Quando o que lembramos é doloroso, ficamos ainda mais incapazes de nos movermos. É um peso, uma rede, uma corrente de pensamentos que assim nos impede a leveza necessária ao novo caminho e à descoberta.
Maria Mariana era cativa de uma ausência.»

Maria Teresa Meireles em Mirabilia (Chiado Editora)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Influência boa é coisa que não existe

«- É verdade ser assim tão má influência, Lord Henry?
- Influência boa é coisa que não existe, Sr. Gray. Toda a influência é imoral, imoral sob o ponto de vista científico.
- Porquê?
- Porque exercer influência sobre um homem qualquer é dar-lhe a nossa própria alma. Ele não pensa com o seu próprio pensamento, nem arde com as suas paixões naturais. As suas virtudes não são para ele reais. Os seus pecados, se é que há pecados, são emprestados. Torna-se eco da música alheia, actor dum papel que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o desenvolvimento da própria personalidade. Realizar perfeitamente a nossa natureza - eis para o que nós estamos neste mundo. Hoje todos têm medo de si próprios. Todos esqueceram o mais alto de todos os deveres, o dever que cada um de nós tem para consigo mesmo. São caritativos, é claro. Dão de comer a quem tem fome e vestem os mendigos. As suas almas, porém, andam famintas e nuas. A coragem abandonou a nossa raça. Talvez até, na verdade, nós nunca a tivéssemos. O terror da sociedade, que é a base da moral, e o terror de Deus, que é o segredo da Religião, são as duas únicas coisas que nos governam. E todavia...»
 
Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray (tradução de Januário Leite, Publicações Dom Quixote)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Eis as Erínias

«E disse mais, mas não o tenho em mente;
   que o meu olhar voara todo lesto
   à alta torre em cujo cimo ardente,
de súbito se elevam, num só gesto,
   três fúrias infernais, sangue tingidas,
   que tinham membros feminis e apresto
e eram de hidras verdíssimas cingidas;
   suas crinas cerastas, serpentinhas,
   por sobre as feras têmporas unidas.
E ele, que bem soube das mesquinhas
   da rainha daquele eterno pranto:
   «As ferozes Erínias eis vizinhas.
Esta é Megera do sinistro canto;
   e chora Aleto ao seu lado direito;
   Tesífone é no meio»; e cala entanto.
Com as unhas as três fendem o peito;
   batem co as mãos, põem-se a gritar tão alto,
   que ao poeta me cingiu temor suspeito.»

Dante Alighieri em A Divina Comédia, Canto IX (tradução de Vasco Graça Moura, Quetzal) 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

No princípio era a célula

«No princípio era a célula
poderosa mas quase invisível,
quase omnipotente mas microscópica,
geradora, sem o saber,
de toda a vida.

No princípio era uma célula
que decidiu dividir-se em duas
para ter uma alma gémea com que se fundir,
a metade de si própria.

No princípio era uma célula,
mas depois já eram duas,
e o verbo, curioso,
teve de vir logo a seguir para dar um sentido qualquer a esta promiscuidade.
E enquanto o verbo pensava,
as células já eram quatro,
e depois já eram oito,
que já eram dezasseis, quase infinitas.
O verbo,
não encontrando razão,
nem sentido,
nem futuro para o que se multiplicava,
decidiu interferir.
O verbo achou por bem ocupar todo o espaço possível com as suas sílabas e assim evitar que o incesto continuasse.
De tal maneira era o verbo um jardineiro zeloso,
que das sílabas nasceram duas árvores
que nunca pararam de crescer
e que nunca morreram.
E o resto são histórias,
verdades pouco absolutas que não conseguem provar que os desconcertantes estragos que o verbo fez no jardim, foram big bang vezes maiores do que a tentação amorosa da primeira célula.»

Patrícia Portela em O Banquete (Editoral Caminho)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

...cansaço

«Não lhe ocorria outra resposta que não fosse esta: "Estou cansado". Tão cansado que, sabendo que todas as portas da sua prisão podiam abrir-se e que tinha a chave que as abria, não dava um passo para a liberdade. Habituara-se de tal modo a esse cansaço que chegou a encontrar nele prazer, o prazer de quem abdicou, o prazer de quem, vendo chegar a hora da decisão, atrasa o relógio e declara: "Ainda é cedo." O prazer do sacrifício. Mas o sacrifício só é completo quando se esconde. Torná-lo visível, é dizer a toda a hora:"Sacrifico-me", é forçar os outros a não o esquecer. E isso significa que ainda não se abdicou completamente, que por detrás da renúncia ainda mora a esperança, tal como, para além das nuvens, o céu continua azul.»

José Saramago em Clarabóia (Caminho)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

livros, livros, livros

«A partir do dia em que descobri o gabinete de leitura de Sylvia Beach, li o Turguenev inteirinho, tudo o que em inglês de Gogol se publicara, as traduções que Constance Garnett fizera de Tolstoi e as traduções inglesas de Chekov. Em Toronto, antes de virmos para Paris, tinham-me dito que Katherine Mansfield era uma excelente contista, uma grande contista mesmo, mas, ao tentar lê-lo depois de Chekov, foi como comparar os contos cuidadosamente artificiais de uma velha solteirona, com os de um médico fluente e experimentado, que fosse ao mesmo tempo um escritor de grande clareza. Mansfield assemelhava-se às bebidas insípidas dos tempos da lei seca. Mais valia beber água. Mas Chekov, esse, não se assemelhava à água excepto na limpidez. Havia algumas histórias que mais pareciam jornalismo. Mas também havia outras verdadeiramente maravilhosas.»

Ernest Hemingway em Paris é uma Festa (Editora Livros do Brasil)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

as assoalhadas da minha casa

«Sabe, menina Varga, quando um homem vive faz assim: conhece todas as assoalhadas da sua casa. Todas. Vai abrindo porta atrás de porta até somente restar uma. E pensa que já só falta aquela assoalhada. Por isso é que há aqueles cientistas que dizem que basta explicar não sei quê para saber tudo. É a assoalhada deles. Todos nós conhecemos a casa onde habitamos, porta atrás de porta. Quer mais uísque? E, dizia eu, que falta apenas uma porta. Um dia, cheios de coragem, resolvemos abri-la. Só falta uma assoalhada. E então deparamo-nos com algo insólito: a porta não dá para assoalhada nenhuma, a porta dá para a rua. Está a ver? Para a rua! E essa rua está cheia de casas cheias, por sua vez, de assoalhadas. Eu, no outro dia, abri essa porta e fiquei parado durante minutos. Foi como quando abri o alçapão e subi para a loja de pássaros e depois para a rua. Aquilo era um novo mundo. Como é que nunca tinha visto aquilo? Um mundo inteiro com árvores e tudo, um lugar onde se voa fora de gaiolas. As minhas pernas começaram a tremer e até cheguei a vomitar. Fechei a porta com força, mas tinha entrado um melro. O mesmo melro que tinha visto em miúdo. Este que você não vê.»

Afonso Cruz em A Boneca de Kokoschka (Quetzal)