quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Como será possível dizer «liberdade»?

«Mordeu vorazmente o pão e engoliu dois bocados. Depois continuou a falar, com uma espécie de paixão pedante. O rosto magro e moreno animara-se, os olhos haviam perdido a expressão de chacota e tinham-se tornado quase sonhadores.
- É lindo destruir palavras. Naturalmente a maior parte é nos verbos e adjectivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinónimos; os antónimos também. Afinal de contas que justificação há para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. «Bom», por exemplo. Se temos a palavra «bom» para que precisamos de «mau»? «Imbom» faz o mesmo efeito - e melhor, porque é exactamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais incisiva para dizer «bom», para que dispor de toda uma série de vagas e inúteis palavras como «excelente», «esplêndido», etc. e tal? «Plusbom» corresponde à necessidade, ou «dupliplusbom» se queres alguma coisa ainda mais forte. Naturalmente, já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras.(...) Syme mordiscou outro fragmento de pão escuro, mastigou-o um pouco e continuou:
- Não vês que todo o objectivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim tornaremos o crimideia literalmente impossível, porque não haverá palavras para o expressar. Todos os conceitos necessários serão expressos exactamente por uma palavra de sentido rigidamente definido e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. (...) Por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo o verdadeiro conhecimento da Anticlíngua terá desaparecido. A literatura do passado será destruída inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron - só existirão em versões da Novilíngua, não apenas tornados em alguma coisa diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer «liberdade é escravidão» se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar de pensar. Ortodoxia é inconsciência.
Qualquer dia - pensou Winston, com convicção profunda e repentina -, Syme será vaporizado. É inteligente demais. Vê demasiado claro»

George Orwell em 1984 (tradução de Paulo Santa-Rita, Unibolso)

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