quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O Caixão do Molhado (excerto)

«Algum tempo depois da independência, atingiu os sessenta anos de idade. Era altura de pensar na vida. Ou melhor, na morte e suas inconveniências. Ouviu uma conversa na loja que o deixou a matutar. Se falava na dificuldade cada vez maior de arranjar madeira para qualquer coisa que fosse, sobretudo para as obras. Os clientes aliás se referiam a construções, pois vinham procurar os materiais no "Canto do Belarmino". Era assunto muito falado na época o facto de a indústria ter enorme dificuldade em providenciar os caixões para os funerais. Se chegou mesmo a um ponto de só certos privilegiados irem a enterrar dentro de caixões seus, pois a maior parte ia embrulhada em lençóis e alguns em caixões alugados, que em seguida eram desenterrados para servirem outros clientes. E foi isso que o preocupou mais. Entrava numa idade em que um acidente do coração acontece a qualquer momento. Ou se não for o coração é outra coisa qualquer. E se vivo já seria difícil arranjar, muito mais complicado seria procurar caixão depois de morto. (...) Foi ali mesmo e naquele momento, ao ouvir as lamúrias dos clientes, que resolveu providenciar imediatamente o seu próprio caixão, para evitar futuras complicações.»

Pepetela em Contos de Morte (Edições Nelson de Matos)

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