segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

o absurdo

«ENTREVISTADOR
O que faz quando o seu marido não está?

LIVIA
Ando na minha bicicleta. Faço repetições demoníacas na minha bicicleta. Tenho um lado demoníaco que só o Michael conhece.

ENTREVISTADOR
Como se manifesta esse lado demoníaco?

LIVIA
Fazendo sanduíches frenéticas. Lançando-se ao comprido no mundo. Sinto coisas. Vicio-me nas coisas. A vida cria hábitos. Ponho-me a fazer coisas e não consigo parar. Sou perigosa para mim mesma. O Michael é perigoso para os outros.

ENTREVISTADOR
Devo perguntar-lhe o que quer dizer com isso?

LIVIA
Pergunte não importa o quê. Eu conto-lhe não importa o quê. Descobri novos patamares de abertura desde que Michael fez aquela viagem de cortar a respiração.

ENTREVISTADOR
E como ficou a saber o que acontecera ao seu marido quando aquele dia longo e aquela jornada longa chegaram, por fim, ao seu termo?

LIVIA
Soube pelo telefone quando ele me ligou no dia seguinte, de manhã cedo, enquanto estava na minha bicicleta estática e fartei-me de rir.

ENTREVISTADOR
De alívio.

LIVIA
De alívio, de estupefacção. Ri de estupefacção. Ri de surpresa. Não conseguia parar de rir.»

Don DeLillo em Valparaiso (tradução de Fernanda O'Brien, Editora Relógio de Água)

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