«O mar tem muitas vozes. A voz que este homem tenta ouvir é a voz da sua mãe. Ele levanta a cabeça, vira o rosto para o ar frio que avança através do golfo e experimenta a sua salinidade intensa nos lábios. A superfície do mar intumesce e reluz, é de um azul-prateado lustroso - uma membrana esticada até se tornar uma fina transparência onde uma vez, durante nove mudanças da Lua, ele estivera suspenso, enroscado, num sonho de preexistência e fora embalado e consolado. Acocora-se agora em cima dos seixos em declive à beira-mar, enrola a capa entre as coxas. Queixo para baixo, ombros encolhidos, atento.
O golfo pode ser bravo ás vezes, as suas vozes tão altas na cabeça de um homem que é como ficar silenciado no meio da batalha. Mas hoje, à luz da aurora, assemelha-se a um lago. Pequenas ondas deslizam-lhe até aos pés calçados com sandálias, depois recuam, escumantes, com um som chocalhante à medida que as pedras lisas se soltam e rebolam.
Este homem é um combatente, mas, quando não está a combater, é lavrador, a terra é o seu elemento. Um dia, ele sabe-o, voltará a ela. Todos os grãos que foram miraculosamente reunidos, aquando do seu nascimento, para fazer justamente estas mãos, estes pés, este antebraço encordoado separar-se-ão e seguirão de novo o seu próprio caminho. Ele é um filho da terra. Mas, ao longo de toda a sua vida, tem sido atraído, na sua outra natureza, para o elemento da sua mãe. Para aquilo que, em todas as suas muitas formas, enquanto oceano, lagoa, ribeiro, é inconstante e insubstancial. Para aquilo que aceita, num momento de quietude, o reflexo de um rosto, de uma árvore frondosa, mas que nada retém, e também não pode ser retido.»
David Malouf em Resgate (tradução de Miguel Batista, Bertrand Editora)
Sem comentários:
Enviar um comentário