quinta-feira, 15 de maio de 2014

"a sua vida era sair da vida dos outros"

«As pegadas não são as marcas dos nossos pés, são as marcas das nossas paixões, das nossas obrigações, dos nossos castigos, dos nossos prazeres. São o lugar por onde andamos, e isso revela muita coisa, mais do que impressões digitais e biografias oficiais. As pegadas, por vezes, deixam pássaros atrás delas, outras mostram quem pisamos, evidenciam quem seguimos. As pegadas de Isa eram, sobretudo, os seus pés atrás de Aminah, revelando a sua enorme devoção. As de Aminah eram, sobretudo, os seus pés a afastarem-se de Isa, revelando a sua enorme vergonha. 

(...) Por vezes, quando Aminah estava a cozinhar, Isa surgia ao seu lado, ao ponto de Aminah se assustar. Por vezes, quando acordava, Aminah via a cara de Isa colada à sua, como um espelho viciado. Gritava com ele de todas as vezes que isso acontecia, e ele baixava a cabeça, apertava a sua Bíblia debaixo do braço e saía. A sua vida era sair da vida dos outros.

Quando Aminah lhe batia, Isa permanecia conciso, imperturbável. A cara virava de um lado para o outro com a força das bofetadas, mas Aminah não lhe acertava nas convicções. Os seus tabefes não seriam suficientes para dobrar uma alma.»

Afonso Cruz em Para onde vão os guarda-chuvas (Alfaguara)

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