quinta-feira, 14 de agosto de 2014

No princípio era a célula

«No princípio era a célula
poderosa mas quase invisível,
quase omnipotente mas microscópica,
geradora, sem o saber,
de toda a vida.

No princípio era uma célula
que decidiu dividir-se em duas
para ter uma alma gémea com que se fundir,
a metade de si própria.

No princípio era uma célula,
mas depois já eram duas,
e o verbo, curioso,
teve de vir logo a seguir para dar um sentido qualquer a esta promiscuidade.
E enquanto o verbo pensava,
as células já eram quatro,
e depois já eram oito,
que já eram dezasseis, quase infinitas.
O verbo,
não encontrando razão,
nem sentido,
nem futuro para o que se multiplicava,
decidiu interferir.
O verbo achou por bem ocupar todo o espaço possível com as suas sílabas e assim evitar que o incesto continuasse.
De tal maneira era o verbo um jardineiro zeloso,
que das sílabas nasceram duas árvores
que nunca pararam de crescer
e que nunca morreram.
E o resto são histórias,
verdades pouco absolutas que não conseguem provar que os desconcertantes estragos que o verbo fez no jardim, foram big bang vezes maiores do que a tentação amorosa da primeira célula.»

Patrícia Portela em O Banquete (Editoral Caminho)

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