«- Quanto a mim, a roleta não foi inventada senão para os russos - repliquei eu; e como o francês disparasse um risinho de troça, insisti dizendo que a verdade estava com certeza do meu lado porque, ao afirmar que os russos eram jogadores, censurava-os mais do que os louvava, e assim era digno de crédito.
- Em que se apoia a sua opinião? - perguntou-me o francês.
- No facto de que, no decurso da história, a faculdade de aforrar capitais entrou no catecismo das virtudes e dos méritos do homem ocidental civilizado, tornando-se talvez o principal ponto de fé. Ao passo que o russo não só é incapaz de aforrar capitais, mas até os gasta a torto e a direito sem o menor sentido das conveniências. Seja como for, nós, russos, também temos necessidade de dinheiro - continuei. - Por isso recorremos sofregamente a processos como a roleta, com as quais se pode ganhar uma fortuna em duas horas, sem trabalhar. Isso fascina-nos, e como jogamos à toa, sem nos constrangermos, acabamos por perder!
- Em parte é verdade - concordou o francês com ar convencido.
- Não, é falso, e você deveria ter vergonha de falar assim do seu próprio país - atalhou o general, severo e sentencioso.
- Desculpe - disse eu -, mas qual será mais abjecto: a extravagância russa ou o sistema alemão, que consiste em juntar dinheiro graças a um trabalho honesto?
- Que ideia tão chocante! - exclamou o general.
- Que ideia tão russa! - volveu, divertido, o francês.
Pus-me a rir, morto por espicaçá-los o mais que pudesse. (...)
- Aqui, cada casa tem o seu Vater horrivelmente virtuoso e extraordinariamente honesto.(...) Trabalham todos como bois e poupam como judeus. Admitamos que o pai já amealhou certa quantia e tenciona legar ao filho mais velho o ofício ou a terra: não dotará a filha, que não casará. Venderão o filho mais novo como criado ou soldado e aumentarão com esse dinheiro o património. (...) E tudo resulta da honestidade, duma honestidade levada ao extremo e tão habilmente que o filho mais novo, que venderam, julga que foi vendido por honestidade. (...) E depois? Pois muito bem, o filho mais velho não é mais feliz: algures, lá longe, espera-o uma Almachen, a eleita do seu coração, mas não pode casar com ela porque não amealharam ainda bastantes florins. Também eles aguardam, virtuosamente, sinceramente, e caminham para o sacrifício de sorriso nos lábios. (...) Finalmente, ao cabo de vinte anos, a fortuna cresceu, os florins foram honrada e vituosamente juntos. O Vater abençoa a união do filho maior de quarenta anos (...) Nessa ocasião, verte lágrimas, prega ainda uma lição de moral e entrega a alma ao criador. O filho mais velho transforma-se, por sua vez, num Vater virtuoso e a história recomeça. (...) Nada há tão sublime. É desse ponto de vista que começam a julgar o mundo e a castigar os culpados, quero dizer, os que diferem deles por um pouco que seja.»
Dostoievski em O Jogador (tradução de Delfim de Brito, Bárbara Palla e Carmo - Biblioteca Visão)
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