«- Acho que o senhor se contradiz.
- De que modo? - perguntou o pintor pacientemente, ao mesmo tempo que, sorrindo, se inclinava para trás.
Este sorriso despertou em K. o sentimento de que começava a descobrir contradições, não nas palavras do pintor, mas no próprio procedimento judicial. Contudo, apesar disso não recuou e disse:
- O senhor começou por dizer que a justiça rejeitava quaisquer provas, depois passou a afirmar que só a justiça pública procedia dessa maneira, e agora chega mesmo a dizer que o inocente perante o tribunal não precisa de auxílio algum. Já aí se pode ver uma contradição. Além disso, declarou há pouco que se podia influenciar pessoalmente os juízes, mas nega que a absolvição real, como lhe chama, possa ser obtida por meio de influências pessoais. Nisto reside a segunda contradição.
- Essas contradições explicam-se facilmente - disse o pintor. - Trata-se de duas coisas diferentes: uma o que a Lei diz, a outra o que eu aprendi por experiência própria. (...) Não sei de nenhuma absolvição real; porém, de influências sei, e de muitas. É possível, naturalmente, que em todos os casos que conheço não tivesse havido inocentes. Mas isso não é improvável? Tantos casos e nem um inocente? Já em pequeno eu escutava o meu pai com toda a atenção quando ele me falava de processos; também os juízes que iam ao atelier dele falavam da justiça, (...) mal tinha a possibilidade de ir ao tribunal aproveitava-a sempre; ouvi um sem-número de processos e segui-os até onde era possível; todavia, tenho de confessar; nunca assisti nem a uma só absolvição real.
- Portanto a nenhuma absolvição - disse K., como se estivesse a falar consigo próprio e com as suas esperanças. - Isso vem confirmar a opinião que eu tinha acerca da justiça. Deste lado também é inútil. Um único carrasco podia substituir toda a justiça.»
Franz Kafka em O Processo (tradução de Gervásio Álvaro, Bárbara Palla e Carmo - Biblioteca Visão)
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