terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Destinados a viver nas árvores

«Foi alegre a conversa. Fizeram-se grandes cumprimentos a Paganel na sua qualidade de caçador e de cozinheiro. O sábio aceitou estas congratulações com a modéstia que fica tão bem ao verdadeiro mérito. Em seguida entregou-se a curiosas considerações a respeito, do magnífico ombu que o abrigava, e cuja profundidade, na opinião do sábio, era imensa.
- Eu e Robert – acrescentou ele, em tom jovial – julgávamo-nos em plena floresta durante a caçada. Houve momentos em que receei nos perdêssemos. Não podia achar o caminho! O Sol declinava no horizonte! Debalde procurava o vestígio dos meus passos. A fome fazia-se sentir cruelmente! Já nos matagais sombrios trovejava o rugido dos animais ferozes... Mas não! Não há aqui animais ferozes, e tenho disso bastante pena!
- Como! – volveu-lhe Glenarvan. – Pois tem pena de que não haja aqui animais ferozes?
- Decerto.
- Porém, há tudo a recear da sua ferocidade...
- A ferocidade não existe... cientificamente falando – replicou o sábio.
- Ah! Isso não, Paganel – disse o major, – não me fará nunca admitir a utilidade dos animais ferozes. Para que servem eles?
- Major – retorquiu Paganel, – servem para se fazer com eles classificações, ordens, famílias, géneros, espécies...
- Bonita vantagem! – disse MacNabs. – Passaria bem sem ela! Se eu tivesse sido companheiro de Noé por ocasião do dilúvio, houvera com certeza impedido que aquele patriarca imprudente metesse na arca leões, tigres, panteras, ursos e outros animais daninhos como inúteis!
(...) 
- Em todo o caso, não os encontrou, suponho eu? – gracejou o major.
- Não – respondeu Paganel, – embora corrêssemos toda a floresta. Foi pena, porque teria sido uma caçada magnífica. Feroz carnívoro que é o jaguar! Com uma simples patada torce o pescoço a um cavalo! Depois de provar a carne humana, saboreia-a com grande sensualidade. Do que ele gosta mais é do índio, depois do negro, em seguida do mulato, e afinal do branco!
- Estou satisfeitíssimo por ficar em último lugar! – declarou MacNabs.
- Ora! Prova isso muito simplesmente que o senhor tem um sabor insípido! – replicou Paganel com ar de desdém.
- Satisfeitíssimo por ser insípido! – insistiu o major.
(...)
- Seja como for, meu bom Paganel – interpôs Glenarvan, – visto que entre nós não há nem índios, nem negros, nem mulatos, estimo muito a ausência dos seus queridos jaguares. Não é tão agradável a nossa situação...
- Como! Agradável! – exclamou Paganel, agarrando-se a esta palavra, que podia dar nova direcção à conversa. – Queixa-se da sua sorte, Glenarvan?
- Decerto – respondeu Glenarvan. – Diga-me: está à sua vontade nestes ramos incómodos e pouco macios?
- Nunca estive melhor, nem mesmo no meu gabinete. Levamos uma vida de pássaros, cantamos, adejamos! Começo a crer que os homens foram destinados a viver nas árvores.»

Júlio Verne em Os Filhos do Capitão Grant (tradução de A.M.da Cunha e Sá, Colecção Planeta Verne) 

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