quarta-feira, 13 de abril de 2011

Ímpetos de amor indefinido

«Conheciam-se demasiado para sentirem as surpresas da posse que lhe centuplicam o prazer. Ema enfastiava-se tanto dele como ele se sentia fatigado dela. (...) Não deixava no entanto de lhe escrever cartas apaixonadas, em obediência à ideia de que uma mulher deve escrever sempre ao amante. 
Mas, ao escrever, era outro homem que tinha em mente, um fantasma feito das suas recordações mais ardentes, das suas leituras mais belas, dos seus desejos mais impetuosos; e esse fantasma tornava-se por fim tão verdadeiro e acessível que a fazia palpitar de admiração, embora não pudesse imaginá-lo com nitidez, de tal modo ele desaparecia, como um deus, sob a abundância dos seus atributos. Habitava o país azul em que as escadas de seda se balançam em balcões, sob o hálito das flores, à luz do luar. Ela sentia que ele andava perto, ia chegar e arrebatá-la-ia  inteiramente num beijo. Em seguida caía do alto, dilacerada; aqueles ímpetos de amor indefinido fatigavam-na mais do que as grandes orgias da carne.
Ema sentia agora um esgotamento contínuo e total. Às vezes mesmo recebia citações, papel selado, coisas que mal lhe passavam diante dos olhos. Teria desejado não viver, ou dormir constantemente.»

Gustave Flaubert em Madame Bovary (tradução de João Pedro de Andrade, Círculo de Leitores)

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