sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

(...)

«Procurou a colher. Resmungando, agitou a colher no ar, acabando por pousá-la na sopa. Levantou a colher uma vez, e voltou a pousá-la na sopa. Levantou de novo a colher, abriu a boca, mas voltou a pousá-la na sopa. Eu e os meus irmãos continuámos a comer. O nosso pai perguntou à nossa mãe porque é que não esperámos por ele. Ela não respondeu. O nosso pai levantou a colher cheia, esperou e atirou-a para dentro do prato. E perguntou porque é que não esperámos por ele. A nossa mãe não respondeu. Cada vez mais zangado, os seus olhos a mudarem, voltou a perguntar porque é que não esperámos por ele. A nossa mãe não respondeu. Levantou-se de repente, a cadeira caiu de costas. Deu dois passos na direcção da nossa mãe e agarrou-a pelo braço, apertou-lhe o braço. Virou-a para ele. Havia um muro de inferno nos seus olhos. Voltou a fazer-lhe a mesma pergunta. Ela parecia pouco assustada. Voltou a fazer-lhe a mesma pergunta. Um momento parado: a respiração. E empurrou-lhe as costas. A nossa mãe caiu de joelhos no chão da cozinha. O Simão levantou-se do seu lugar. O nosso pai virou o rosto para ele. Tocou-o com a sua fúria. E virou o rosto para a nossa mãe. Aproximou-se dela. Voltou a fazer-lhe a mesma pergunta. Ela voltou a não responder. O nosso pai levantou a mão para bater-lhe onde a apanhasse. Talvez na cara, talvez nas costas. Tinha o braço no ar quando sentiu uma mão a segurar-lhe o pulso. Era o Simão. Apertava os lábios e o interior dos seus olhos ardia também. Como se não acreditasse, dentro do ódio,o nosso pai virou-se para ele. Sem que ninguém reparasse, a nossa mãe levantou-se e encostou-se a uma parede. Os olhares do nosso pai e do Simão, um de encontro ao outro, eram uma única barra de ferro. Mas o nosso pai não tinha medo de nada. A sua força era invencível. Libertou o braço com um puxão. O meu irmão continuou a olhá-lo com toda a força do seu olho esquerdo, desafiando-o. O Simão era um homem de dezasseis anos. Não tinha medo de nada. Durante um instante, o nosso pai entendeu frases inteiras nesse olhar, e quis calá-las, e quis apagá-las para sempre daquele olhar cego. A palma grossa da sua mão atravessou o ar. Um movimento rápido do meu irmão segurou-lhe o braço. O nosso pai não queria acreditar. A força do nosso pai contra a força do Simão. Sangue a correr nas veias. O nosso pai. Fúria, raiva, sem conseguir fazer nada. Com as duas mãos, o meu irmão empurrou-o. O nosso pai ficou caído, humilhado, incrédulo. Levantou-se, correu para o Simão, e foi outra vez empurrado, e caiu outra vez. Levantou-se, nervoso, com a voz travada por aquilo que não era capaz de dizer, e gritou: rua!».

José Luís Peixoto em Cemitério de Pianos (Bertrand Editora)

Sem comentários:

Enviar um comentário