sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

honra ao homem

«- Bendito seja o Senhor, e louvada seja Sua Santidade! - disse em voz alta e inteligível. - Há perdão de morte para um dos condenados.
- Perdão! - exclamou o povo dum só grito; - há perdão!
A esta palavra perdão, Andreia pareceu dar um salto, e ergueu a cabeça.
- Perdão para quem? - gritou.
Pepino permaneceu imóvel, mudo e ofegante.
- Perdão da pena de morte para Pepino, por alcunha Rocca Priori - disse o chefe da confraria.
E passou o papel ao capitão que comandava os carabineiros, o qual, depois de o ler, o restituiu.
- Perdão para Pepino! - exclamou Andreia inteiramente desembaraçado do estado de entorpecimento em que parecia imerso; - e porque há-de ser o perdão para ele e não para mim? devíamos morrer juntos: tinham-me prometido que ele havia de morrer antes de mim, e não há direito de me fazerem morrer só, não quero!
     E soltou-se dos braços dos dois sacerdotes, estorcendo-se, berrando, rugindo e fazendo esforços insensatos para quebrar as cordas que lhe atavam as mãos.
O carrasco fez sinal aos dois ajudantes, que saltaram abaixo do cadafalso, e esforçavam-se por agarrar o condenado.
- Então que há? - perguntou Francisco ao conde.
Porque, como tudo aquilo era dito na algaravia romana, não percebera bem.
- O que há! - disse o conde - não percebe bem? aquela criatura humana que vai morrer está furiosa porque o seu semelhante não morre como ela, e, se a deixassem, espatifá-lo-ia com unhas e dentes, e não o deixaria gozar a vida de que vai ser beneficiado. Oh! homens! homens! raça de crocodilos! como diz Karl Moor - exclamou o conde, estendendo os dois pulsos para essa multidão toda - como eu vos reconheço nisto, e como em todos os tempos sois dignos de vós mesmos!
O facto é que Andreia e os dois ajudantes do carrasco rolaram por terra; o condenado continuava gritando: "Deve morrer, que morra; não há direito de me matarem a mim só".
- Olhem, olhem - continuou o conde, agarrando em cada um dos dois rapazes  pela mão - olhem, porque, pela minha alma, é curioso; ali têm um homem que estava resignado com a sua sorte, que caminhava para o cadafalso, que ia morrer como um cobarde, é verdade, mas enfim ia morrer sem recriminações: sabem o que lhe dava alguma força? sabem o que o consolava? sabem o que lhe fazia sofrer o suplício com alguma paciência? era a certeza de que outro quinhoava a sua agonia; era a certeza de que outro ia morrer primeiro que ele! Levem dois carneiros para o açougue, dois bois para o matadouro, e façam compreender a um deles que o seu companheiro não morrerá: o carneiro balirá de alegria, e o boi mugirá de prazer; mas o homem, o homem que Deus fez à sua imagem, a quem Deus impôs como primeira, como única, como suprema lei, o amor do próximo, o homem, a quem Deus deu voz para exprimir o seu pensamento, que grito solta primeiro quando sabe que o seu companheiro é salvo? uma blasfémia. Honra ao homem, a obra-prima da Natureza, o rei da Criação!»

Alexandre Dumas em O Conde de Monte Cristo (Mel Editores)

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