sábado, 13 de abril de 2013

Em Vez de Velhas Fotografias

Tinha aulas três dias por semana e, o resto do tempo, ocupava-o a fumar cigarros e a ler, aguardando o momento certo para telefonar ou esperando que o telefone tocasse já tarde na noite e a sua voz invadisse o meu silêncio. As conversas eram longas, pautadas por monólogos de um e outro lado. Por vezes, descrevíamos apenas o nosso dia com precisão, momento a momento; noutras, ela fazia-me as suas estranhas perguntas, que me deixavam paralisado pelo medo de não saber dar a resposta certa.
«Se pudesses ir para qualquer lado, para onde irias?»
Era uma noite do princípio de Fevereiro. Estava deitado sobre a cama.
«Hum. Pergunta difícil. Nova Iorque?»
Senti-a sorrir do outro lado da linha.
«Essa não vale. Já cá estás.»
«Às vezes sinto que não estou. Às vezes acho que esta cidade é uma ilusão, que não é verdadeira. Que fui eu que a imaginei, ou que a sonhei, e aconteceu ela ser exactamente como nos meus sonhos.»
«Quando cruzas as grandes avenidas. Quando olhas à distância e parecem não ter fim. É a autêntica metrópole dos sonhos futuristas.»
«E, no entanto, já é tão antiga.»
«Mais atniga do que nós.»
«Mais antiga do que qualquer pessoa viva.»
«Mas não respondeste à minha pergunta.»
«Estava a ganhar tempo para pensar. Acho que já sei. Posso fazer uma viagem no tempo?»
«Se quiseres.»
«Então digo-te Londres, no século dezanove. Queria seguir o trilho de Jack, o estripador, e viver entre os aristocratas de Oxford Street. Imagino-me num casaco comprido, chapéu alto e bengala, a fumar cachimbo nos clubes de homens.»
«Que coisa tão aborrecida.»
«Mas teria uma vida dupla. De dia, um homem discreto. À noite, um vingador das sombras, a perseguir criminosos e psicopatas à solta por entre as brumas do East End.»
«Continua a soar tudo muito sonolento.»
«Então é a tua vez.»
«Também quero fazer uma viagem no tempo. Mais pequena do que a tua.»
«Força.»
«Queria estar em Singapura, há vinte e três anos, no hotel Fullerton, no quarto 262.»
«Porquê?»
«Queria assistir aos últimos momentos de vida do meu pai. Queria ver como ele era.»
Ergui-me na cama e fiquei em silêncio perante aquela confissão inesperada. A mudança de tom tinha sido brusca e, estupidamente, senti-me culpado por não ter adivinhado à partida a intenção de Kim.
«Não me parece que isso fosse uma boa coisa para tu veres.»
«Não é à morte que me refiro. Não tenho qualquer desejo de ver ninguém dar um tiro na cabeça. É dos últimos momentos que falo. Gostava de ver o seu rosto, como ele era, em vez de fotografias velhas que só mostram um boneco inanimado ou um perfil. Gostava de ver os seus movimentos, e se seriam parecidos com os meus; gostava de ver a expressão que teriam os seus olhos nos derradeiros instantes da sua vida. Percebes o que quero dizer?»

João Tordo em Hotel Memória (Quidnovi)

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