«As ideias de meados deste século XX no tocante às relações criança-pais têm sido consideravelmente corrompidas pelo palavreado escolástico e pelos símbolos estandardizados do negócio psicanalítico, mas eu espero estar a dirigir-me a leitores imparciais. Uma vez, quando o pai de Avis buzinou a avisar que chegara para levar a sua pequenina para casa, senti-me obrigado a convidá-lo a entrar para a sala e ele sentou-se um momento. Enquanto conversámos, Avis, uma garota pesadona, sem atractivos e afectuosa, chegou-se para ele e, pouco depois, sentou-se confortavelmente no seu joelho. Não me lembro se mencionei o facto de Lolita ter sempre um sorriso absolutamente fascinante para os estranhos, um terno semicerrar de olhos, uma doce e sonhadora radiância de todas as suas feições que não significava nada, evidentemente, mas que era tão belo, tão afectuoso, que se tornava impossível reduzir tanta doçura ao simples trabalho de um gene mágico que lhe iluminava automaticamente o rosto num símbolo atávico de qualquer antigo ritual de boas-vindas - prostituição hospitaleira, poderá comentar um leitor grosseiro. Bem, ela estava de pé, enquanto Mr. Byrd girava o chapéu nas mãos e conversava e... Imaginem a minha estupidez, esqueci-me de mencionar a principal característica do famoso sorriso de Lolita: o terno e nectarino sorriso, que lhe enchia a cara de covinhas, não se dirigia nunca ao estranho que se encontrava na sala: pairava, por assim dizer, no seu próprio vazio remoto e florido ou percorria, com míope suavidade, objectos ocasionais - e foi isso que aconteceu naquele momento: enquanto a gorda Avis se abeirava do seu papá, lolita sorria ternamente a uma faca de fruta, que tacteava na borda da mesa, ao mesmo tempo que se encontrava a muitos quilómetros de mim.»
Vladimir Nabokov em Lolita (Biblioteca Visão, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues)
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