«Sabe, menina Varga, quando um homem vive faz assim: conhece todas as assoalhadas da sua casa. Todas. Vai abrindo porta atrás de porta até somente restar uma. E pensa que já só falta aquela assoalhada. Por isso é que há aqueles cientistas que dizem que basta explicar não sei quê para saber tudo. É a assoalhada deles. Todos nós conhecemos a casa onde habitamos, porta atrás de porta. Quer mais uísque? E, dizia eu, que falta apenas uma porta. Um dia, cheios de coragem, resolvemos abri-la. Só falta uma assoalhada. E então deparamo-nos com algo insólito: a porta não dá para assoalhada nenhuma, a porta dá para a rua. Está a ver? Para a rua! E essa rua está cheia de casas cheias, por sua vez, de assoalhadas. Eu, no outro dia, abri essa porta e fiquei parado durante minutos. Foi como quando abri o alçapão e subi para a loja de pássaros e depois para a rua. Aquilo era um novo mundo. Como é que nunca tinha visto aquilo? Um mundo inteiro com árvores e tudo, um lugar onde se voa fora de gaiolas. As minhas pernas começaram a tremer e até cheguei a vomitar. Fechei a porta com força, mas tinha entrado um melro. O mesmo melro que tinha visto em miúdo. Este que você não vê.»
Afonso Cruz em A Boneca de Kokoschka (Quetzal)
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